Por Clara Amorim e Douglas Ferreira
Combinamos de nos encontrar embaixo do complexo de viadutos da Lagoinha, na região pericentral de Belo Horizonte. A partir da década de 1930, com a construção da avenida Antônio Carlos, e nas décadas seguintes, com a construção desse complexo viário composto por quatro viadutos e um túnel que interliga o centro a avenidas arteriais da cidade, a região da Lagoinha foi sendo fragmentada, subtraída, e se tornou, para a maioria dos belo-horizontinos, apenas um lugar de passagem. Pois foi exatamente neste ponto aparentemente avesso à presença de pedestres, à beira de uma via ruidosa e movimentada, que Zé D Nilson, 54 anos, pedreiro e artista plástico, combinou de nos encontrar para que conversássemos sobre suas obras.
O dia estava quente, Zé desceu a Pedreira Prado Lopes, onde mora, até a avenida Antônio Carlos, cruzou a Praça Vaz de Melo – espaço amplo e árido, dominado pelo concreto, onde antes foi uma área de lazer importante para o bairro – até nos encontrar. Estávamos embaixo do viaduto, abrigados num pequeno trecho de sombra. Logo que chegou, a conversa desatou depressa, pois já estávamos frente a frente com uma de suas obras, numa das vigas do viaduto, e, se olhássemos bem, todo o redor estava ocupado por elas: trata-se de um museu a céu aberto, notamos – e o lugar de passagem foi pouco a pouco se tornando outro lugar. Para quem passa nos ônibus e nos carros em alta velocidade, o trânsito e a pressa são as condições de recepção desses murais. E, se por um lado, ele sabe jogar com essa condição da rapidez e do relance da maior parte dos seus espectadores, por outro, ocupar esse espaço sem nenhum outro veículo além do próprio corpo e deter-se nessa apreciação também nos revela muitas outras facetas e camadas de sua produção artística.
A primeira obra que vislumbramos é justamente um lamento contra o fim da Lagoinha, um adeus que não quer ser dado, uma homenagem, como muitas de suas obras o são, uma homenagem ao espaço, aquele em que estávamos:
Lagoinha, Bom Fim, Jaguarão, Além Paraíba, Itapecerica: ao inscrever os nomes desses bairros e ruas em sua obra, Zé D Nilson parece querer também mantê-los vivos, acesos, unidos, apesar de o projeto urbanístico da cidade ter pretendido o contrário. Há também uma “brincadeira” no mural, que consiste no sentido da palavra Lagoinha se referir tanto à localização geográfica quanto ao copo, popularizado pelos bares da região, que um homem insiste em sustentar para que não caia.
Caminhando um pouco mais à frente, porém do outro lado da avenida, vemos o que Zé nos conta ser um dos seus primeiros murais, localizado quase ao lado desse ACABA NÃO LAGOINHA, e que também guarda o mesmo tom de homenagem e humor, dessa vez dedicado a uma amiga. Zé a encontrou em situação de rua, morando embaixo desse mesmo viaduto em que estávamos, uma amiga trans do antigo internato onde tinham passado parte da infância. Nesse reencontro, após retomarem contato por um tempo e antes que ela fosse embora outra vez, sem dizer para onde, Zé decidiu pintar um mural em sua homenagem, que foi autorizado e acompanhado por ela:
Nessa textura, Zé lhe pinta um retrato: um rosto e um tronco, enfeitado com jóias nas orelhas e no pescoço, além de maquiagem na boca e nos olhos. A parte inferior desse corpo não foi desenhada explicitamente, mas sugerida e substituída por palavras: O PRECONCEITO / HOMENAGEM. Debaixo desta última palavra, nasce um caule de onde brotam flores que emolduram esse corpo. Embora seja composto apenas de azul e preto, esse mural parece ter muitas cores, uma explosão anunciada pela frase exclamativa na parte superior: MAMÃE: CHER-GAY! Mais uma vez, Zé D Nilson brinca com as palavras, criando uma ambiguidade alegre: o verbo cheguei se transforma no nome da cantora Cher, um dos ícones da cultura pop, e na palavra gay. O verbo chegar, em si, é indicativo de movimento, de uma constante vinda, de um constante vir a ser no mundo. Esse anúncio de chegada, no entanto, é complementado por um comentário crítico, introduzido por Zé de maneira muito pessoal, no plano do detalhe, logo abaixo dessa frase inaugural: É FOD. Opressão e alegria convivem em um mesmo mural, numa dualidade tensa: as palavras PRECONCEITO e HOMENAGEM, quando colocadas uma sob a outra, mutuamente se desestabilizam, se corroem, compondo um misto de riso empático e de amargor pela dor da outra, um riso amargo. É FOD.
Olhávamos os murais de longe, os dedos apontando para a outra margem, as mãos tampando no rosto o sol escaldante de Belo Horizonte, até que Zé nos convida a observar as texturas de perto, atravessando a avenida Antônio Carlos, fora da faixa de pedestre, pois elas se localizam exatamente nos canteiros que separam suas diferentes vias. São canteiros estreitos, que nos obrigam a ficar mais próximos uns dos outros para nos proteger dos carros que incessantemente trafegam e também para que possamos nos ouvir. Nossas vozes, já abafadas pelas máscaras que nos protegem do coronavírus, são agora também abafadas pelo som do trânsito. Apesar do estreitamento dos canteiros, Zé está a todo momento fora deles, com um pé na rua, sem aparentemente temer qualquer acidente devido à familiaridade com o espaço. Já esteve aqui muitas vezes. E isso se confirma pela quantidade de obras espalhadas pelo complexo de viadutos da Lagoinha: são aproximadamente 20 murais, pintados a partir de 2017.
Enquanto nos contava sobre a história de cada mural e de sua relação com a arte, e respondendo prontamente a nossas perguntas curiosas, Zé se lembra de momentos pontuais em que experimentou o desenho e a pintura. O primeiro, ainda na escola da infância, foi a pintura de uma fotografia 3x4 da mãe numa tela que foi guardada até pouco tempo, mas que hoje não existe mais. Sua mãe foi trazida aos 12 anos de Jequeri para trabalhar em Belo Horizonte como empregada doméstica na casa de uma família turca. Após sua morte precoce, com cerca de 40 anos, Zé ficou órfão e foi morar no primeiro internato dos 4 aos 7 anos, época em que começa o desacerto em sua vida, segundo conta em entrevista ao Projeto Moradores (2019). A memória da mãe ainda acompanha o Zé adulto, pois ele realiza, anos depois, outra homenagem a ela: um mural na Pedreira Prado Lopes, preto e vermelho, composto de um coração de onde saem galhos e flores; sobre o desenho, a dedicatória: MAMÃE. ‘PRO-CÊ’.
Há dez anos, Zé encontrou nova oportunidade de trabalhar e experimentar a pintura. Ao finalizar o trabalho como pedreiro na casa de uma cliente, olhou para o teto do banheiro e decidiu, por sua conta e risco, pintar um sol ao redor da lâmpada. Como não fora instruído a fazer isso, não sabia se a dona da casa iria aprovar ou não, mas intuía que sim – “ela era hippie”, observou. Então, quando foi mostrar a casa após concluído todo o serviço, deixou o banheiro por último, com medo de como ela reagiria ao seu “atrevimento”. Porém, conforme tinha intuído, ela adorou a pintura e decidiu manter o sol ali, aceso.
O ofício de pedreiro e o ofício artístico se assemelham, se tocam, por vezes se confundem no fazer de Zé D Nilson. A começar pelos materiais, pelos instrumentos, que são necessariamente os mesmos: argamassa, tinta de parede, desempenadeira, espátula, rolo, pincel. A argamassa, por exemplo, material utilizado na fixação de azulejos no interior das casas, é também utilizada na produção de seus murais com texturas em alto e baixo relevo que encontramos nos viadutos da cidade, com a diferença de que, para esse uso externo, o artista utiliza os tipos AC2 e AC3, mais resistentes à exposição ao sol, ao vento, à chuva. Para além dos instrumentos e dos materiais, há também em comum entre os dois ofícios a técnica de textura de parede, emprestada da construção civil – mas que, nos murais, é empregada de forma surpreendente, e só pode ser precisamente percebida ao se chegar perto, ao tocar e parar para ver. Assistindo ao gesticular de Zé diante de suas obras, não se pode deixar de pensar que as mesmas mãos que constroem e reformam casas são as mãos que revestem as vigas e paredes dos viadutos para criar ali suas formas e inscrever suas palavras. Há uma porção enorme de gestos em comum entre o pedreiro e o artista. “Tem que ter munheca”, comenta, este que pode ser um dos segredos da sua profissão dupla: saber articular bem as mãos.
Entre as vias da Antônio Carlos, ainda sob o complexo de viadutos da Lagoinha, Zé nos apresenta mais uma textura em que sua visão crítica de mundo aparece em primeiro plano. NEGONA é um mural em alto relevo pintado numa das vigas do viaduto, que hoje serve como apoio à barraca e aos objetos de um morador em situação de rua. É possível perceber, na parte inferior, um desgaste promovido por essa interação contínua entre a obra e as pessoas que por ali transitam e dormem. A figura central da textura consiste em uma mulher negra em pé e foi produzida a partir da colagem de tiras de cerâmica, formando o seu corpo, assim como de pedaços menores, formando o seu cabelo. Esse material tinha sido descartado de alguma construção civil, e Zé o recuperou do lixo para produzir seu mural, gesto recorrente do artista. A descoberta de que materiais descartados de obras da construção civil poderiam ser reciclados em suas obras artísticas aconteceu quando saiu de um velório no Cemitério da Paz e se deparou com uma variedade de azulejos, madeiras, restos de tinta e de argamassa entulhados em um lixo, o que foi imediatamente incorporado aos processos de intervenção nos viadutos, que já vinham ocorrendo. NEGONA, então, é um mural que conta, no mínimo, duas histórias: a de sua personagem central e a de seus materiais.
Em fundo preto, a personagem altiva e imponente está cercada por desenhos abstratos vermelhos que rimam bem com a estrutura do seu cabelo afro e com a cor e a caligrafia do nome. Ao nos apresentar a obra, Zé afirma que algumas pessoas veem neles raízes, outras veem raios, mas que ele próprio não arrisca uma definição. Fora do fundo preto e acima do desenho, Zé tece, outra vez, um comentário crítico que dialoga com a obra e também com quem a recebe: seja quem está só de passagem, quem se detém a olhá-la, assim como nós, ou quem ali mora provisoriamente. CADE A CONSCIÊNCIA CARA é uma interpelação poderosa, que convoca o observador e o retira de uma posição inerte, de uma contemplação inativa, convoca uma postura ética, reivindica uma conscientização diante da figura dessa mulher negra. É interessante perceber que a obra se dirige a um interlocutor masculino, evidenciado pelo vocativo CARA, embora não exclua a possibilidade de interpelação a outros sujeitos, mais abstratamente. Para além do questionamento, essas palavras fazem uma proposição, inscrita em tamanho menor no corpo textual, porém, de maneira similar ao É FOD do mural MAMÃE: CHER-GAY!, igualmente contundente e empática à situação da mulher retratada: AMEM.
O fato de que a maior parte das texturas de Zé D Nilson se localiza em vigas e paredes de viadutos da cidade tem como consequência a constatação de que, além da população em trânsito, o principal público de sua obra seja quem ali passa a maior parte do tempo: pessoas em situação de rua. Belo Horizonte compõe a região brasileira com maior número de pessoas nessa condição, o sudeste, que concentra 56% do número total do país (IPEA, 2020). Em Minas Gerais, há uma estimativa de 18 mil indivíduos nesse estado, sendo que metade deles se concentra em um único município: a capital mineira, de acordo com levantamento do projeto Polos de Cidadania, da UFMG (2020). Essa crise socioeconômica e habitacional, longe de ser resolvida pelas últimas gestões da cidade, foi acentuada pela crise econômica e de desemprego instaurada no Brasil nos últimos anos: segundo a mesma pesquisa do IPEA (2020), houve um aumento de 140% da população de rua no Brasil a partir de 2012, estimativa que pode ser ainda mais agravada no contexto de pandemia da covid-19.
Em parte por já ter convivido de perto com essa realidade, Zé D Nilson constrói uma obra sensível aos conflitos e às intervenções desses sujeitos invisibilizados. No mural FAMÍLIA, localizado no mesmo complexo de viadutos, vê-se uma textura em baixo relevo e tridimensional que retrata aves de vários tamanhos e formas rondando um galho. Zé nos conta que sua intenção era criar naquele espaço, de alguma forma, algo que lembrasse um ninho, o alimento e o acolhimento, o estar com os seus. Pintou-a a partir de suas memórias familiares, mas quis também que as pessoas em situação de rua, ao verem a família de pássaros, recordassem suas próprias famílias, que em muitos casos ainda existem, apesar de estarem ausentes, distantes ou esquecidas. “E por que pássaros, Zé?”, perguntamos. “Ah, pela liberdade, né?”. Segundo ele, algum tempo depois de ter pintado essa textura, um dos seus amigos que estava em situação de rua e morava, com outras pessoas, em uma casa improvisada ao redor dessas vigas, voltou para casa.
Caminhando pela mesma avenida, já próximos do conjunto habitacional IAPI, encontramos outra textura dedicada ao mesmo grupo social. A princípio instigados pelas suas cores vibrantes nas bordas e pelo sentido ambíguo daquelas palavras, Zé nos apresenta uma leitura muito mais profunda do que víamos: conta que, apesar do colorido aparente, NÃO QUERO BEIJO nasceu da sua indignação com o fato de que políticos só procuram saber da população de rua em época de eleições ou muito pontualmente, aparentando sempre muita simpatia, muita prontidão, munidos de promessas, mas que logo em seguida vão embora e nunca mais retornam. Então o mural, que retrata na centralidade do quadro uma árvore murcha sendo beijada por um beija-flor, complementa o seu sentido com mais uma palavra: DIGNIDADE. Ao invés de um beijo furtivo, de uma simpatia provisória, o artista reivindica que essa população seja tratada com a dignidade devida e que seus problemas sejam resolvidos a longo prazo: “ao invés de trazerem um prato de comida, por que esses caras não aparecem aqui e oferecem emprego?”.
Surpresos pelos desdobramentos de sentido e pelas possibilidades de diálogo com diferentes públicos que Zé instaura em suas obras, comentamos sobre a forte presença do humor, nesse e em quase todos os outros murais que havíamos percorrido. “A brincadeira pega mais pra dizer a verdade”, explica, principalmente para quem está em trânsito e passa apressado, não consegue ler tudo, mas pela percepção cruzada entre texto e imagem consegue acessar a mensagem. A graça, a jocosidade da obra de Zé funcionam também como um vislumbre dos muitos sentidos ali contidos, tocando o espectador e marcando-o com uma frase ambígua que se repete no seu ir e vir pela cidade: “NÃO QUERO BEIJO”, “NÃO QUERO BEIJO”, “NÃO QUERO BEIJO”...
Para além de unicamente tematizar os conflitos de quem vive na rua, Zé também acolhe as sugestões de quem está por perto como parte do processo criativo. Assim como ocorreu com a amiga a quem foi dedicado o MAMÃE: CHER-GAY!, que acompanhou a feitura do mural, outras pessoas também manifestam opiniões durante o processo, seja quem mora embaixo dos viadutos, transeuntes ou conhecidos do bairro. Embora já comece a textura com uma ideia pronta, esboçada no papel, Zé não se importa em incorporar as sugestões dos outros, inclusive diz que prefere assim, recordando que seus murais preferidos foram aqueles em que houve maior participação. ESTOU POR CHEGAR, por exemplo, localizado no viaduto Moçambique, foi pensado devido à ausência de banco no ponto de ônibus ali situado. Incomodado com o fato de que quem usa o transporte público é obrigado a ficar em pé à espera, Zé criou um mural que retrata uma silhueta em tamanho natural cercada por pegadas e asfalto, com um banco individual na altura da cintura, onde é possível se sentar. Na parte superior, a mensagem do artista: ESTOU POR CHEGAR. Por estar num ponto de ônibus sempre movimentado, essa foi a textura com maior participação do público, por isso se tornou também uma das favoritas do artista.
Essa interação orgânica com o público, que pode interferir no processo de criação, tocar a obra, sentar-se nela, dormir sob sua sombra, desgastá-la, pode também levar à destruição. A arte de rua, diferentemente daquela abrigada em galerias, está vulnerável à ação do sol, do vento, da chuva, da poluição, dos indivíduos, do movimento da cidade, e não conta com os cuidados de uma equipe de conservação, correndo o risco de desaparecer a qualquer momento. Essa é sua limitação e também sua beleza. Zé D Nilson tem consciência disso, principalmente porque suas obras se situam em espaços utilizados também como moradia. Alguns dos seus primeiros murais no complexo de viadutos da Lagoinha foram queimados e desapareceram por completo, outros restaram enquanto sombra. Porém, no geral, revela que a população de rua respeita suas texturas e não as danifica. Quando isso acontece por acaso, diz não se importar com o dano: “a vida vai girando”, constata com desprendimento, “a destruição é consequência do estilo de vida de quem mora aqui”.
Com o decorrer da caminhada pelo museu a céu aberto de Zé D Nilson, alguns traços característicos de sua obra foram se sedimentando: a intenção de homenagem e acolhimento, a relação entre palavra e imagem, a crítica social, os gestos em comum entre pedreiro e artista, os materiais reciclados, a técnica da textura de parede, o humor, a interação com o público transeunte e com as pessoas em situação de rua, a efemeridade intrínseca à arte urbana. Para além, outra característica comum parece capaz de sintetizar sua produção: a comunhão com o espaço. Na arte contemporânea, essa relação é denominada de site specific (sítio específico), e consiste, a grosso modo, no fato de que determinadas obras de arte são produzidas e só podem ser pensadas em relação com o espaço em que foram criadas. Na produção de Zé, não é possível olhar para seus murais sem considerar o suporte dos viadutos, o movimento incessante de carros, o ruído constante de trânsito, a moradia da população de rua, o contexto urbano. Mais do que simplesmente estar situada ali, sua obra dialoga explicitamente com esse contexto, ora prestando-lhe homenagem, acolhendo-o, ora incitando reflexões e denunciando suas mazelas. “Eu uso o momento do local”, ele sintetiza. E complementa: “as texturas vêm da necessidade, do momento”.
Em 2019, Zé D Nilson participou como artista convidado do CURA (Circuito Urbano de Arte), o maior festival de arte pública de Minas Gerais, que já conta com cinco edições e tem modificado a paisagem de Belo Horizonte com intervenções artísticas de grafiteiros, pixadores e outros artistas plásticos em fachadas, empenas de prédios e outros suportes. Nesse ano, a produção do festival, a convite do movimento Viva Lagoinha, deslocou suas intervenções da região do hipercentro de BH para o antigo reduto da boemia belo-horizontina. Zé D Nilson, então, foi desafiado a criar o maior dos seus murais na fachada cega do edifício Novo Rio, localizado entre a rua Diamantina e a avenida Antônio Carlos. O desenho escolhido foi inspirado num outro, produzido na Pedreira Prado Lopes, e retrata, em tons coloridos e vibrantes, uma paisagem com casas e símbolos da região (a pedreira, o calango, a loba), legendada pela seguinte inscrição: VIDA À LAGOINHA. Embora tivesse liberdade de escolher qualquer outro desenho, Zé escolheu retratar o próprio espaço onde o mural se localiza, captando com muita perspicácia “o momento do local”, a intenção do projeto, a movimentação cultural de outros moradores que também desejam que a Lagoinha seja tratada novamente pelo poder público e pela população com a dignidade que merece, por sua história e por seu presente. O respeito de Zé D Nilson com o suporte do mural fica evidente visualmente no detalhe das janelas reais do prédio, acolhidas também como janelas das casas de sua textura.
Quando paramos do outro lado da avenida para observar e conversar sobre VIDA À LAGOINHA, entre silêncios e poucas frases, Zé parecia contemplar mais do que essa obra de proporção gigantesca, que inicialmente lhe deu medo, mas que hoje representa boa parte do seu orgulho – “eu tive mais medo da ideia de participar do CURA do que de subir nos andaimes pra pintar; com os andaimes eu tô acostumado”. Ele parecia contemplar a proporção que sua trajetória foi ganhando até aqui. Começando a texturizar de maneira despretensiosa nas paredes dos viadutos da Lagoinha, com intervenções também na Pedreira Prado Lopes, Zé D Nilson nunca se considerou um artista e até hoje sente desconforto quando dizem que o que produz é arte. “Artista pra mim é o Roberto Carlos, esses caras assim”, ele diz. “Pois vá se acostumando com a ideia”, nós lhe respondemos. E a contemplação da sua travessia até aqui também parece apontar para os caminhos que estão por vir. Zé é um artista em constante movimento, e só durante os três meses que separam a data de realização da entrevista da data de finalização deste texto, já é possível encontrar novas intervenções suas pelas avenidas e viadutos da cidade. “Eu fui crescendo em cima do fazer”, conclui.
Conclui, mas depois nos leva para conhecer um trabalho ainda em processo. FLORAL, como se refere, também é um mural de grandes proporções, iniciado em 2020, mas interrompido pela falta de tinta. O suporte é uma parede em declive que contém um barranco, por onde costuma descer água quando chove. Observando esse movimento da água, Zé decide colorir a parede de tons de azul, verde e cinza, como se toda ela estivesse inundada, resultando no nascimento de um enorme ramo de flores. Assim como ocorreu em VIDA À LAGOINHA, a textura também respeita a abertura dos canos espalhados pela superfície, transformando alguns nos botões das flores – “às vezes o defeito é que faz a arte”, afirma. De novo, ele nos convida a atravessar fora da faixa de pedestres uma via muito movimentada para observarmos sua obra de perto: a percepção de quem a observa de longe é radicalmente alterada quando se aproxima. Os murais de Zé D Nilson, apesar de marcados por estarem sempre em trânsito em meio a uma metrópole, nos convocam a uma aproximação capaz de revelar um universo tátil, crítico e sensível, profundamente conectado com o espaço.
Entrevista: Clara Amorim e Douglas Ferreira
Texto: Clara Amorim e Douglas Ferreira
Fotografia e vídeo: Clara Amorim
Contato Zé D Nilson: @zednilson
Clara Amorim vive com o corpo e o pensamento na interseção: educação, escrita, arte. É formada em Letras pela UFMG, professora de linguagens, educadora social na ONG Desembola na Ideia, escreve a newsletter Asa da palavra e é coautora do livro de poemas Corpo de Terra, com previsão de lançamento para 2021 pela Editora Quelônio.
Douglas Ferreira, 1993, nasceu em Pirapora (MG) e atualmente reside em Belo Horizonte. Possui formação em Letras pela UFMG e atua como professor e editor da Revista Cupim. É autor de Artur verde (Alecrim, 2020).