Por Daniel Grimoni
Em seu prefácio para A queda do céu, Eduardo Viveiros de Castro comenta um episódio em que um embaixador brasileiro, nos idos de 1934 — quando o Brasil promulgava uma nova Constituição —, relatou ao antropólogo francês Claude Lévi-Strauss: “o senhor irá descobrir coisas apaixonantes no Brasil, mas índios, nem pense nisso, o senhor não encontrará um só”.
Se o embaixador realmente acreditava ou não no que dizia, a proposta colonizatória nunca foi outra que não essa extinção. Até poucas décadas atrás, na verdade, permaneceu viva a perspectiva de que tanto os povos originários deste continente quanto os povos de África, escravizados e trazidos aqui, um dia desapareceriam, suplantados pela “raça branca” como consequência da miscigenação (frequentemente compulsória e violenta). E em 1970 ainda se falava da floresta amazônica, no contexto das grandes obras e estradas inauguradas pela ditadura civil-militar, como um inferno verde a ser conquistado.
Ainda assim, parte desses povos originários conseguiu se desviar das sucessivas tentativas de apagamento, físico ou simbólico, de ontem ou de hoje, mantendo-se em movimento, deixando marcas, esperando brechas para ecoar possibilidades múltiplas de mundo. E insistindo na ideia de nomear a si mesmos, nomear o espaço ao seu redor, como uma prática fundamental de manutenção de vida e memória.
É essa insistência em uma autonomia, essa multiplicidade de leituras e dizeres de mundo, que é apontada pelo poema Totem (2013), do poeta paulista André Vallias, que pode ser visto em formato audiovisual aqui:
A leitura no vídeo é do poeta, assim como a tipografia, que foi criada especialmente para esse poema — originalmente concebido para ser exposto, com 13 metros de comprimento, no centro cultural Oi Futuro Ipanema, no Rio de Janeiro. Em 2017, o poema foi também publicado como livro pelas editoras Cultura e Barbárie e Azougue.
Totem
Sou guarani kaiowá munduruku, kadiwéu arapium, pankará xocó, tapuio, xeréu
yanomami, asurini
cinta larga, kayapó
waimiri atroari
tariana, pataxó
kalapalo, nambikwara
jenipapo-kanindé
amondawa, potiguara
kalabaça, araweté
migueleno, karajá tabajara, bakairi gavião, tupinambá anacé, kanamari [...]
Um poema “onomatotêmico”, composto de 222 nomes pelos quais são chamados diversos povos originários no Brasil e do verbo conjugado em 1ª pessoa com que se inicia o poema, repetido em alguns momentos: “sou”.
Algo como um mensageiro
Totem se constrói em relação direta com a ação de solidariedade ao povo guarani kaiowá que ocorreu nas redes sociais em 2012, propondo que somos todos guarani kaiowá. Em linha parecida segue o manifesto/movimento Índio é nós, lançado em 2014 (e do qual participa Vallias), que se coloca em defesa dos povos indígenas e propõe que “não somos um grupo, somos vários”.
Os 222 nomes presentes no poema apontam justamente para essa variedade e sua defesa; para uma pluralidade explosiva que hoje, depois de 520 anos de uma investida colonizadora ainda em curso, se esparrama entre mais de 150 línguas distintas e, segundo estimativas recentes, aproximadamente 255 povos em território brasileiro. Um número que, vale dizer, se movimenta, como a floresta: ora por conta de povos e línguas que desaparecem, ora por conta de comunidades que se reconhecem, organizam e ganham nova vida.
Totem é, assim, um poema crítico, político. No entanto, não há nele um esforço de elaboração argumentativa por parte de Vallias, seja a favor dos povos indígenas, seja contra seus inimigos. Nesse sentido, é um poema que não diz o que veio dizer. Em vez disso, aposta no que cada nome — e o conjunto de todos — têm a dizer por si mesmos, em sua materialidade, nas forças de vida e cultura que evocam e na diversidade de mundo que insinuam.
Por conta dessa aposta, é crítico: porque parte de uma crise da linguagem. Alguém saberá todos os sentidos desses nomes, que falam por si mesmos, mas dificilmente podemos imaginar o que significam — isto é, além de que existem aquelas pessoas que os conceberam e, eventualmente, outras que registraram algumas de suas traduções possíveis?
E político, porque essa crise da linguagem é uma crise política: não apenas porque toda linguagem é política, mas porque aquela diversidade de nomes e sentidos, que se recusa a ser abarcada por completo, se estende sobre nossa experiência, revelando um conjunto surpreendente de povos e realidades com o qual não sabemos interagir; para muita gente, provavelmente difícil de acreditar. Não são poucos os impasses que essa realidade coloca, tanto para o fazer-poema quanto para o fazer-mundo, especialmente quando esses fazeres precisam lidar mais radicalmente com a diferença.
O poema escrito por Vallias se insere, portanto, em uma história da literatura brasileira — que por vezes se debruça sobre os povos indígenas e a questão de sua relação com a sociedade de matriz europeia — com esse deslocamento importante, que a tensiona, quando evita assumir um lugar de narração, descrição, criação de imagens (geralmente distorcidas) sobre esses povos. Segue em outra direção, propondo suas forças de existência como o material do texto.
Dessa forma, Totem se constrói não como um ponto de vista externo e enviesado sobre o mundo ou sobre esses povos originários, mas como um espaço aberto, um espaço em intersecção com eles — que não discursa sobre o mundo ou esses povos à maneira de um discurso científico, não os descreve ou tenta compreender, mas os reverbera de alguma forma, como um mensageiro.
Captura de diferenças x produção de alianças
No entanto, há um ponto de dilema e tensão ética no poema, que surge exatamente em sua primeira palavra. Através do verbo sou, é assumida uma afinidade com esses povos, uma aproximação ou solidariedade junto à qual o texto nasce (no contexto das campanhas mencionadas) e que ele realiza de uma nova forma.
Ao mesmo tempo, por esse verbo, o poema também propõe uma identidade com esses povos, ou a participação com eles em um tipo de comunidade. Aqui, acredito que seja importante perguntar: quem pronuncia esse verbo, sou, a que vozes ou sujeitos ele expressa? Seria André Vallias? Seria o poema em si? Seria a ideia-imagem de um totem, evocado pelo título do poema — um totem, portanto, que não apenas se compõe a partir desses nomes e povos, mas nos expressa essa sua composição, nos conta como é formado? Ou isso dependeria de quem lê ou fala o poema, de como, onde e quando esse texto é pronunciado?
De qualquer forma, trata-se de uma aproximação que pode ser, também, uma diluição, uma captura de diferenças: tanto aquelas internas, que se estabelecem entre os povos mencionados no poema, quanto aquelas entre esses povos e a voz que propõe com eles uma identidade, ainda que simbólica. Sob essa perspectiva, é um gesto que se aproxima da história de relações entre os povos indígenas e a sociedade (ou literatura) de matriz europeia, história que outras forças do poema buscam tensionar.
Isso porque, ainda que toda a gente possa “ser” guarani kaiowá, no sentido político de estar ao lado dos guarani kaiowá, ou de qualquer um dos muitos povos convocados pelo poema, pode ser fundamental o cuidado de sustentar a alteridade como postura ética na relação com cada povo, cada grupo, cada outro, enfim — tomando-a como centro para a produção não de identidades, mas sim de alianças, partilhas, negociações que busquem romper com a história colonizatória e as práticas contemporâneas que a atualizam.
E recusando-se, se isso é verdade, a afirmações como essa originada nas redes em 2012, especialmente quando, a partir delas, correr-se o risco de ignorar a participação de pessoas não indígenas (especialmente pessoas brancas, mesmo as bem intencionadas) na manutenção do genocídio dos povos indígenas no território brasileiro e em outros mundo afora. Ou quando correr-se o risco, da mesma maneira, de que uma tentativa de trazer visibilidade a uma luta enterre, sob a força do slogan e das torrentes digitais, a possibilidade de diálogo real, responsabilização crítica e ação para mudanças profundas nas estruturas violentas que permeiam nossas relações.
Por isso, não é para uma leitura dos povos indígenas, de sua produção artística, sua experiência social, seus modos de vida ou de fazer-mundo que parto do poema de Vallias neste texto — uma leitura que precisa ser feita, predominantemente, não apenas sobre obras e textos produzidos por pessoas indígenas, e pelo reconhecimento de sua autoria na cena artística como uma força tanto ancestral quanto crescente, mas também a partir de pontos de vista indígenas. É, sim, para uma leitura desse ponto de tensão ética, em sua relação com a poesia, na forma que se dá em Totem, e o que essa tensão tem a nos dizer a respeito do poema como um espaço de possível repetição dessa história de captura de diferenças ou, em vez disso, um espaço de negociação de alianças, pela recusa de construções de um outro que não passem pelo acolhimento de sua autonomia e sua alteridade.
Em Totem, essa produção de uma aliança, ou a tentativa dessa produção, se dá também na forma de uma traição, uma recusa realizada pelo texto. Sendo a única palavra de referenciação externa, que remete, entre outras possibilidades, à autoria de André Vallias, a palavra sou é também uma das poucas no poema que vêm da língua portuguesa. Por conta dessa palavra, esse é um texto que se inicia na língua do colonizador; que parte dela, por assim dizer.
Por outro lado, ao não emitir um juízo a respeito desses povos — já que, bom ou mau, todo juízo pode ser uma colonização, e tanto mais quanto menos se conhece —, e por buscar com eles uma aliança, fazendo seus nomes ecoarem, o poema se movimenta para trair a máquina colonizatória. Valendo-se também da língua portuguesa, busca recusar seu projeto de hierarquia e separação.
Quais são os limites desse gesto que o poema reivindica, e o que eles podem nos dizer a respeito da construção de (po)éticas que apontem caminhos para convívios possíveis, que partam justamente de nossas diferenças e sua sustentação: de modo a não incorrer no apagamento, na homogeneidade?
Encruzilhada, pluralidade, encantamento
Os 222 nomes são organizados pelo poeta criando um esquema de rimas, métrica e ritmo familiar à poesia ocidental, mas que pode surpreender por fazê-lo com o vocabulário de que lança mão. A organização, na verdade, é um aspecto importante do trabalho poético envolvido em Totem — para além dos aspectos visual e sonoro trabalhados por Vallias, com a tipografia original, o formato da instalação do poema, os outros elementos que acompanham a leitura na versão audiovisual. Trata-se de um poema de pesquisa, um texto cujo gesto se desenrola a partir de uma prática arqueológica, de escavação, separação, agrupamento.
Mas é, ainda, um gesto aberto ao erro, à incapacidade absoluta de abarcar a real diversidade de povos (e, portanto, de mundos) com que se confronta. Como aponta Viveiros de Castro, o poema de Vallias nos apresenta uma lista “sempre inacabada, nomes que surgem e nomes que desaparecem, nomes inventados, nomes sonhados, nomes equivocados, nomes dados por outrem, nomes de um na língua de outro, às vezes meros garranchos nos livros-registros do Estado, ganchos onde os brancos penduram sua ignorância e sua arrogância”.
A despeito disso, a sonoridade presente nesses nomes convoca e cria uma natureza, ou força, que aos poucos se acumula e atravessa o poema. Forma-se nele, desse modo, uma encruzilhada sonora, cujo reconhecimento nos oferece um ângulo para lidar com sua crítica e sua política.
Essa encruzilhada se inscreve entre, de um lado, a língua portuguesa e o gesto de organização rítmica e listagem de nomes, com suas limitações, exercido pelo poeta; e, de outro, a materialidade fônica dos povos originários deste território, cujas marcas podemos encontrar em nosso cotidiano compartilhado, mas assim reunida, como em Totem, demanda o reconhecimento de que o espaço que habitamos é formado, afinal, de mais diferença e multiplicidade do que costumamos considerar.
Ler ou escutar esse texto multilinguístico do começo ao fim é precisar reconhecer o que já é urgente há muito tempo, mas aqui também existe sonoramente, fonicamente, a partir da materialidade vibrante e viva de uma imensidão de povos diferentes: que qualquer ideia de um Brasil só se sustenta, mesmo, na invenção e ilusão colonial.
Trata-se de uma das rupturas realizadas pelo poema-totem de Vallias: ao atentar para a multiplicidade que habita os limites do território brasileiro e convocá-la, o poema deixa nítido o fracasso das ideias mais correntes de povo brasileiro, de Brasil, de nacionalidade — ainda que possamos nos questionar a respeito do nível de aproximação e identidade que realiza. Um território tão plural que só existe, como país, devido à colonização de matriz europeia, eficiente em desconsiderar diferenças e fingir um mundo de aspecto único (e vertical, composto de hierarquias). Frequentemente, o custo de um país é uma história contínua de segregação, marginalização e apagamento de dissidências.
Mas, já que estamos aqui, o que nos resta, a respeito do fracasso e da insistência expostos por Totem, talvez seja reinventar esse projeto de país por seus muitos avessos: fazer com que dê errado, encontrar brechas para sabotá-lo, encantando seus desencantamentos. Em seu lugar, cultivar movimentos na direção de outras costuras, longe das megalomanias de dominação e de um mundo fechado em si mesmo, fechado às diferenças.
Como no poema, trata-se de algo que pode ser mais bem feito a partir da escuta, essa que parece uma das maiores ausências nos modos de ser ocidentais. Escutar, portanto, os nomes, vozes e sentidos de um espaço feito de rios, colinas, seres viventes, gente humana e não humana, aproximações e diferenças, negociações e embates, aberturas de mundo e a recorrente memória de que as vidas se fazem em rede.
Já que estamos aqui, são quantos os mundos possíveis de se reconhecer e inventar nisso que chamamos de Brasil? Quais seriam seus muitos nomes?
Agradeço a Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa, amigo querido, pela leitura generosa e crítica do rascunho desse texto e por algumas ideias essenciais à sua versão atual — que, dentro de suas inevitáveis limitações, ainda pôde se ampliar muito com a sua ajuda.
Daniel Grimoni é artista, estudante de Letras pela UNIRIO e professor de Linguagens no pré-vestibular social Leonhard Euler. Escreveu os livros de poesia Todo (o) corpo agora (2019) e Bicho bicho (2020), este último em co-autoria, além de poemas e contos em coletâneas e revistas. Faz parte da equipe editorial da Revista Tropel. Estuda questões ligadas à geografia, ecologia, antropologia, arte e educação.
Ilustração: Bernardo Morais
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