top of page

Poemas reunidos

Yasmin Bidim



Sempre gostei dos livros

chamados poemas reunidos

pela ideia de festa ou de quermesse

como se os poemas se encontrassem

como parentes distantes

um pouco entediados

em volta de uma mesa

(Ana Martins Marques, O livro das semelhanças)



carta-poema a marília garcia


poderia começar de muitas formas

poderia começar dois ou três anos atrás

quando ouvi pela primeira vez a pj harvey

poderia começar naquele janeiro quando conheci a carina santos

no curso sobre roland barthes com a paloma vidal

escolho começar com a marília garcia

porque este é um poema sobre ela

é também um poema sobre a pj harvey

sobre a carina santos

sobre outras pessoas que vão surgir no caminho

do poema

é um poema sobre pessoas

mas é sobretudo um poema sobre um encontro

o poema é um espaço vazio, mas carregado de iminência

estes dias eu li a carta que a carina santos escreveu para a marília garcia

a carina que assim como eu

estuda a obra da marília

escreveu uma carta em forma de poema

uma carta aberta

para a poeta cuja obra ela estuda pesquisa investiga

ao ler a carta

me perguntei se eu deveria escrever uma carta para marília também

sim. eu deveria escrever uma carta para marília

porque eu também estudo pesquiso investigo

a obra da marília

e eu pensei

como é estranho estudar alguém

que é assim como eu

não literalmente como eu

mas estudar alguém que vive no mesmo país

na mesma época

que fala a mesma língua

que às vezes lê os mesmos livros

assiste aos mesmos filmes

e talvez ouças as mesmas músicas

que eu


eu não sabia até então

mas sim

a marília garcia escuta as mesmas músicas que eu

eu não sabia até então

e desisti de escrever a carta

porque eu não sabia o que dizer


mas depois

enquanto eu estudava a marília

enquanto eu pesquisava sobre a marília

enquanto eu lia um artigo da julya reis

a palavra iminente de marília garcia

eu me deparei com um poema em forma de entrevista

que ela deu para o victor heringer

o começo do poema que parecia uma carta

dizia

querido

respondo suas perguntas num domingo de manhã está nublado

e estou sentada numa cadeira com o computador no colo

no fone está tocando this mess we´re in


minha leitura deteve-se no último verso

no nome da canção em inglês

minha respiração parou

e eu não conseguia ler o verso seguinte

uma linha esconde outra linha

eu segui em frente

e confirmei o que eu já sabia

música da pj harvey com o thom yorke

e eu enfim soube

o que dizer:

que eu e a marília garcia, às vezes, ouvimos as mesmas canções

e nosso encontro aconteceu

num intervalo entre versos

num processo de pesquisa

na iminência (imanência)

de um poema



***



Documentarista


refletido de "isso não é um documentário",

de Marcos Siscar


o modo como vivi a infância

me confundiu para o que

veio depois

a vida não era como nos

arquivos da memória

tampouco

como nos álbuns de fotografia


a transformação de mim em

eu mesma doía

e sentia sempre tão trágica

a vida

não sabia ao certo se era

eu quem vivia

ou se o sujeito da foto

lentamente morria


um desencontro gerou a partida

o eu que ia e

o eu que vinha

jamais se cruzaram

a estrada em fenda se abria

a superfície luminosa cindida

e nunca jamais soubemos

se eu era a personagem ou

a documentarista



***



O primeiro poema do ano


para Amanda Ribeiro,

a partir de seu videopoema "o primeiro poema do ano"


o primeiro poema do ano

vai para o jardim mutante

sobrevivente do antropoceno

vai para a chuva

há semanas

ininterrupta


o primeiro poema do ano

é um poema roubado

de outra pessoa

o primeiro poema do ano

é uma farsa

o primeiro poema do ano

nem mesmo é

o primeiro poema


o primeiro poema do ano

nem pode ser um poema

pois

o primeiro poema do ano

vai para

o útero gestante

para o gato que se lambe

para a estrada que cabe

na tela vacilante


o primeiro poema do ano

que foi roubado de outra pessoa

que nem é o primeiro poema

que nem pode ser um poema

vai

sem disfarces

sem novidades





 

Yasmin Bidim é pesquisadora, poeta, videoartista e produtora cultural. Faz doutorado em Estudos de Literatura na UFSCar. Produz no YouTube o canal de videopoesia Poesia em Obra, onde divulga trabalhos autorais. Em 2020, lançou seu primeiro livro de poemas, o Livro dos Interiores (Penalux). É ensaísta e crítica de arte e cultura, tendo trabalhos publicados na Revistaria, Jornal Relevo, Totem & Pagu, Revista Crua e Revista Aboio.


Colagem: Fernanda Maia

1 Comment


Antonio Angelo Oliveira
Antonio Angelo Oliveira
Nov 12, 2022

Este primeiro poema do ano

não o deveria ser, mas sequenciado em outros tantos.

No muito dizer, no muito nos experimentar em possibilidades.

Bom ler e tentar entender.

Reler.

Antonio Ângelo

Like
bottom of page