Pedro Melo Rocha e Teresa Melo
Vivia-se num intervalo de silêncio invulgar. Foi de repente que o mar ficou sôfrego e nem vinha para perto como era habitual. O bramido contra as crostas rochosas enfraqueceu, o sargo não subia para vir pensar-se debaixo da rebentação e até o vento perdeu o cheiro. Lá na aldeia, esperava-se por algo que marcasse novamente o ritmo.
Naquele fim de tarde abrasador, descobriram-se os dois sozinhos. Ela perfeitamente encaixada nas pernas dele, os joelhos afastados. De frente pareciam reflectir-se. Mostrou as mãos voltadas para cima, esticou os dedos finos na forma de bico de jarra e soprou de manso sobre as palmas. Acreditava que era assim que se limpava o coração das inquietações. Depois, esfregando-as uma na outra, aqueceu-as, e quando sentiu que estavam limpas, pousou-as em concha sobre as pálpebras dele. Respiraram fundo.
O negrume engolia o resto em volta, e a voz dela cessou a harmonia, “cheiras a peixe”. Ainda com os olhos tapados, ele levou as mãos ao nariz. “Não percebo como. Faz semanas que não vou ao mar”, retorquiu com a testa franzida. “Mesmo assim”, voltou ela.
Quis olhá-la. Afastou-lhe as mãos ainda mornas e abriu os olhos. “Tu é que cheiras a peixe”, sussurrou. Voltou-se então para si próprio e fez deslizar o indicador e o polegar da mão direita por baixo da língua, de onde tirou uma pepita de ouro. Em suavidade, colocou-lhe o pequeno grão reluzente entre os lábios. Ela sorriu e estremeceu por dentro como uma corda de um instrumento cujo nome ninguém se lembrava.
A nuca ensopada em suor, soltou-se um gemido escondido e sentiu-se a verter. O rosto dela manteve-se sereno, as narinas dilatadas, enquanto o seu corpo húmido, revestido no que parecia ser um tecido de escamas brilhante e viscoso, se contorcia como o de um peixe. Ele assistia incólume, abraçando-a ao colo entre os espasmos. O líquido de sal, minerais e grãos de areia embebia as tábuas de madeira. Não tardou e ficaram submersos. Sem testemunhas, o ser mostrou-se híbrido: mulher, peixe e homem, deslizando no líquido azul até desaparecer nas profundezas. Ninguém o ouviu cantar.
Os dias seguintes passaram por uma luz, que, através da película fina de ar, coava as folhas dos bordos de amarelo. A aldeia enchia-se da ausência do som das marés vivas que não chegavam. Um homem tirava as folhas das caldeiras, sob a promessa da chuva. A velha, que costumava prever o tempo pelas dores nos joelhos, passou por baixo da escada do homem. “Ó ‘vó, passe outra vez que fica pequenina!”. A avó respondeu-lhe sem lhe devolver o olhar, “Está calado. Tomara que o Outono chegue devagar”.
Nessa noite, choveu.
Pedro Melo Rocha viveu toda a vida no Porto com passagens por Lisboa, Viana do Castelo e Lamego. Formado em artes visuais, tem integrado projetos de comunicação com cruzamentos artísticos e plurais na arquitectura, escultura e performance.
Teresa Melo é escritora. Formada em ciência política e relações internacionais, dedica-se ao estudo das teorias feministas aplicadas nas disputas dos espaços e das linguagens através da performance e da poesia. É autora de “As abelhas não dançam bachatas” (Cas’a Edições 2021). Declaradamente feminista e comunista.
Ilustração: Vinícius Ribeiro
Lembrou-me 100 anos de solidão, Remedios, Macondo...
Um espaço para a realidade mágica.
Nesta aldeia, neste mar sôfrego!