Douglas Ferreira
somos o próprio lugar. (...) na sala de bagagens:
“só de olhar os embrulhos, já sei tudo.
o nó trai o atador, sua mão trêmula.”
(Uljana Wolf, X Suspected mental defect)
Visito o ateliê de Rodrigo Mogiz numa tarde de novembro de 2021. O artista plástico de 43 anos havia aberto seu espaço de criação sediado no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte (MG), para que o público pudesse conferir a exposição Aqueles (in)visíveis (2021). O conjunto de bordados, exposto de maneira virtual na Casa Fiat de Cultura nesse mesmo ano, agora ganhava um espaço expositivo físico, ainda que limitado pelos protocolos sanitários impostos por uma insistente pandemia de covid-19. A saída encontrada foi receber o público de maneira agendada, com um número limitado de visitantes por vez. Agendei meu horário para o meio da tarde de uma sexta-feira e fui recebido sozinho pelo artista, que generosamente abriu para mim o seu espaço de silêncio, de troca, de acúmulo e de reinvenção do mundo.
Ao subirmos uma escada, chegamos ao hall de exposição do prédio de dois andares, compartilhado por outros artistas. Nesse cômodo, estava exposta a série Aqueles (in)visíveis, um conjunto de bordados em tecidos coloridos que representam casais homoafetivos: dois homens de terno e gravata, dois homens de braços dados, um de terno, outro de vestido, duas mulheres em posição de beijo, coroadas por apliques de renda. Rodrigo diz que se inspirou em fotografias de casais lésbicos e gays do século XIX, disponíveis na internet. Nessas representações, surpreende-me a tensão, presente já no título da série, entre a visibilidade dos tecidos de cores berrantes, das linhas coloridas e excessivas, que pendem, soltas, do bordado, e a invisibilidade desses sujeitos, que permaneceram (até que ponto?) ocultos da sociedade, escondidos em sua vida privada. O artista perfura o tecido com alfinetes coloridos, por vezes essa incisão fere o próprio corpo dos personagens, aproxima-se demais da boca, do rosto, das mãos, do coração, reafirmando no detalhe essa tensão entre uma primeira visagem de afeto e orgulho, e uma segunda, de violência, preconceito e agressividade.
Não se trata de um bordado perfeito, que preza pelos contornos nítidos, pela beleza, pela negação do avesso. Pelo contrário, Rodrigo Mogiz faz questão de deixar exposta ali a natureza dessa arte: linhas soltas, agulhas, alfinetes, apliques, tudo misturado na mesma composição, como se a frente fosse também o verso do tecido. Esse emaranhado, essa confusão entre frente e verso, entre visível e invisível, entre o pronto e o inacabado, entre o que se mostra e o que se esconde, entre a vida pública e a privada, compõem-se como uma representação precisa da tensão na qual viviam esses casais representados, na qual vivem casais homoafetivos ainda hoje, apesar de todas as conquistas do movimento LGBTQIA+, que nunca, contudo, distribuem-se igualmente para todas as classes, raças, gêneros, gerações, todos os sujeitos dessa sigla.
Ainda estupefato com a série com a qual eu acabava de me relacionar, percebo que Rodrigo me esperava em silêncio na porta de um dos cômodos que circundam o hall expositivo e me surpreendo quando ele me convida para entrar. “Quer conhecer o ateliê?”, pergunta com generosidade. “É possível?”, penso: “é possível conhecer o outro lado, invadir essa intimidade?”. Mas o sorriso tímido de Rodrigo me diz que sim, então aceito sem mais hesitar.
O ateliê é um dos cômodos desse prédio de dois andares, um espaço que poderia ser um quarto de uma casa comum, nem tão grande nem tão pequeno. Quatro paredes, uma porta e uma janela, apenas. Mas era ali que tudo acontecia. Ao dar os primeiros passos, percebo: estou entrando na cabeça do artista. Por isso, fiquei surpreso com a tranquilidade e a segurança com que Rodrigo me convidava para entrar dentro de si, do seu processo, um lugar de onde eu conseguiria notar as coerências e incoerências, os acertos e erros, os êxitos e fracassos de sua produção artística.
Nesse instante, compreendo que a visita poderia se tornar uma entrevista. Porém, mais do que o próprio Rodrigo, eu queria entrevistar o lugar. O que pode contar sobre a obra o ateliê de um artista? Quais histórias são narradas pelas paredes, pelos objetos ali pendurados ou espalhados sobre as mesas de trabalho? Que tipo de pensamento está contido na rotina, no abrir e fechar de portas e janelas, na vassoura que limpa, na disposição das coisas, mais próximas ou mais distantes das mãos?
Marcamos, então, um novo encontro, mas da próxima vez só falaríamos do espaço.
A parede-painel: “caos inapropriado”
Logo que entramos no ateliê, uma parede à direita chama a atenção: um enorme painel que cobre toda a superfície branca, de placas de papelão cobertas por colagens, bordados, pinturas, desenhos, objetos pendurados, transparências, sobreposições, formando um todo ao mesmo tempo coerente e caótico, onde o olhar se perde. “É impossível observar cada detalhe”, digo a Rodrigo, e ele concorda. A maior parte dela é composta por páginas de revista de moda e anúncios publicitários, de onde saltam corpos humanos, predominantemente masculinos, em poses fotográficas. Rodrigo Mogiz tem uma espécie de obsessão por corpos, pois eles se derramam por todo o espaço: na parede-painel, nos livros espalhados e na própria obra. Embora seja um artista que transite entre o bordado, a pintura, o desenho e a colagem, algo se repete e interliga essas várias linguagens: o corpo.
As imagens são apropriadas de revistas de ampla circulação, assim como os materiais utilizados para intervir sobre o papel frágil e barato, também acessíveis: miçangas, pedrarias, rendas, alfinetes, agulhas, linhas, bijuterias. Essa escolha se alinha à pretensão do artista de “trabalhar com materiais simples, que circulam nas mãos de todo mundo”, segundo pontua. Isso nos leva a pensar numa certa promiscuidade dos materiais, que também poderia ser insinuada pela ideia de erotismo dos materiais, em consonância com as representações de corpos masculinos ali presentes: sem camisa, de cueca, em posições que, por vezes, clamam pelo olhar do outro, pelo desejo do outro. Tanto os materiais usados como o resultado do trabalho de Rodrigo nos remete à estética kitsch, que confere valor artístico a objetos quase invisíveis em sua absoluta banalidade. Segundo o artista, sua ideia é “ressignificar o material popular para o mundo artístico, colocar em diálogo esses dois mundos, tornar a arte acessível e o cotidiano, artístico”.
Ao voltar o olhar para a parede que parece nos engolir, percebo que, lado a lado com as imagens, estão coladas algumas frases recortadas de revista que legendam o sentido homoerótico do painel, ao mesmo tempo que tecem comentários irônicos, debochados e fazem reivindicações por liberdade: “um toque de sedução”; “garoto garoto garoto”; “pessoal e intransferível”; “é preciso inventar o mundo, já que o tema é liberdade”; “o bem amado”; “cores vivas”; “pólvora & poesia”; “seus desejos foram atendidos”; “por que a humanidade continua indiferente”; “preciso disto para viver”; “choque chique”; “seja feita a vossa vontade”; “celebre a originalidade”; “fundamento da visibilidade”; “amor numa noite vazia”; “quem não entender que se dane”; “diva da carne viva”; “boys don´t cry”; “muy caliente”; “tão diferente tão perfeita só uma língua água ardente”. Essas frases dispersas pela parede se conectam não só entre si, mas com toda a trajetória de Rodrigo, pois ora comentam, ora insinuam seus temas e sua linguagem, como se também viesse das revistas a crítica à obra. Uma crítica ready-made ou um manifesto subversivo, quem sabe. Frases que poderiam ser títulos das partes do painel ou nomes para novas séries, trabalhos ainda por vir.
Diante da evidência de que apenas uma parede de ateliê pode sugerir as linhas de força para compreender toda a obra, pergunto a Rodrigo se ele a usa como matriz para o seu trabalho. Ele diz que “não, não olho muito para ela”. Desenvolve a resposta dizendo que o painel “não se atualizou; desde que foi feito de uma só vez como um trabalho para a Cemig em 2010, permaneceu praticamente inalterado, uma obra pronta”. Mais uma vez, uma obra pronta que denuncia o seu avesso, o seu processo, tudo ali parece estar por fazer, ao passar a impressão de que o artista a cada dia acrescenta um novo elemento, a impressão de um painel em construção, embora esteja intacto há mais de dez anos. “Não, não olho muito para ela”, essa frase fica ecoando, e, diante da onipresença dessa parede no cômodo, primeiro me pergunto: “é possível?”. Mas logo em seguida, lembrando que estou dentro da cabeça do artista, refaço a pergunta: “é preciso?”.
A outra parede: pequena galeria
Na parede por onde entramos através da porta, estão reunidos exemplares de várias séries do artista, como Almofadinhas (2016-2017), conjunto de almofadas e tecidos bordados, exposto primeiramente no Museu do Bispo do Rosário (RJ) e, em seguida, no SESC Paladium (MG), exposição em parceria com os bordadores Fábio Carvalho (RJ) e Rick Rodrigues (ES). Esse conjunto traz à tona a tensão entre o masculino e o feminino, presente no fato de que historicamente a tarefa de bordar, adornar, coube às mulheres, porém, aqui, é executada por três homens, que no início do século XX, pejorativamente, seriam denominados “almofadinhas”. Esse termo faz referência a um grupo de rapazes petropolitanos que participaram de um concurso de bordado e pintura de almofadas trazidas da Europa, confrontando a masculinidade durante a República Velha. Apesar de continuar afirmando o lugar do homem na arte de bordar, Rodrigo Mogiz se orgulha de ter as mulheres costureiras da sua família como referência para o seu gesto criativo. Formado em Belas Artes na UFMG, começou sua carreira artística na pintura, mas o bordado, como um afeto que veio à tona, foi ganhando corpo de maneira natural em sua produção.
Pergunto ao artista por que aquelas obras estão ali, naquela espécie de pequena galeria, portfólio, panorama. Ele me diz que aquelas são as peças que sobraram, que não foram vendidas. “Então não são obras pelas quais você tem apego, e por isso foram guardadas?”, questiono. “Não, não tem apego envolvido nelas. As obras de que faço questão ficam na minha casa. Aqui, no ateliê, a única obra que não vendo é essa pintura [em outra parede], que pintei ainda na época da faculdade, foi minha primeira, por isso não vendo”, responde. Olho para a pintura no lado oposto, um enorme homem azulado de costas, sem camisa, com lírios saindo do bolso de sua bermuda vermelha e uma auréola bordada ao redor da cabeça. Em suas costas, um pequeno cruzamento de pontos bordados fere a pintura, de onde escorre sangue. Logo que entramos, somos recepcionados por esse homem híbrido. Cruzo essa tela com a parede-painel, com a parede-galeria, com a exposição lá fora, como se dessa obra primordial desdobrassem as outras, percebo mais uma vez que tudo se conecta, que a assinatura visual de Rodrigo já estava no primeiro trabalho, e talvez por isso ele o mantivesse ali, como uma memória.
Uma obra puxa a outra, podemos sintetizar a produção de um artista nesta fórmula simples: um novo trabalho está contido num velho, eles dialogam, seja pela reafirmação, seja pela ruptura. Essa ideia fica visível na parede para onde olhamos: lado a lado, as molduras se sucedem, com um pequeno espaço em branco entre elas, dando a ideia de movimento, de ritmo, de topografia. “Quando você sabe que uma série acabou e outra está começando?”, pergunto. “Quando o trabalho começa a ficar chato, monótono. Você não sabe se tem alguma coisa a mais a dizer com aquilo. Não gosto de cair numa fórmula”, ele responde e continua: “agora mesmo estou saindo da série Aqueles (in)visíveis e começando outra. Ainda não sei o que vai ser, mas estou desenvolvendo o processo de colagem”.
Onde uma nova série pode caber aqui? me pergunto, circundando o espaço com o olhar. Então encontro uma parede quase em branco.
A parede branca
Quem menciona a parede branca é Marco Marinho, o fotógrafo, que tinha estado em silêncio até então. Oposta à parede-painel, encontrava-se, de fato, o seu contraponto: uma parede quase vazia, exceto por poucas obras penduradas. “Diante de um espaço pequeno com tantos estímulos visuais, o branco da parede parece também fazer algum sentido”, Marco comenta. Rodrigo concorda: “sim, acho que é um respiro”.
Os objetos
Duas mesas de trabalho: uma maior, outra menor.
Na maior,
linhas, tesouras, agulhas,
alfinetes, bastidores,
colas, pincéis, papéis,
cartolinas, tecidos, alfineteiros,
caixas,
um cubo mágico.
“Por que um cubo mágico?”
“Não sei, ele só está aqui,
compondo”.
No lado oposto, junto à parede branca,
a mesa menor, vermelha,
e uma luminária.
“Bordo nessa mesa mais vazia,
bordo na mesa,
mas também no colo”.
Um dedal de metal:
“É lindo,
mas não uso,
atrapalha o movimento dos dedos”.
Um altar:
São Sebastião dentro de uma taça
com purpurina.
Purpurina cor de sangue
dentro de uma seringa de vidro
ao lado do santo.
Livros.
Livros de arte, catálogos,
livros de tatuagem, livros de bordado,
livros de poesia,
livros de fotografia, livros sobre o corpo masculino,
um livro sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário,
outro sobre a obra de Leonilson.
O ateliê
“O espaço do ateliê quebra a lógica do museu, de trazer uma coerência. Não é um cubo branco, mas outra maneira de ver o trabalho. Entrar no ateliê é entrar dentro de um trabalho meu”, sintetiza Rodrigo. Antes de vir para esta casa no bairro Santa Tereza, trabalhava em outro espaço no bairro São Lucas, porém disse preferir este de agora, pois possibilitou mais trocas com os outros artistas que o compartilham. “As pessoas fazem o espaço”, complementa. Antes ainda desse primeiro ateliê, Rodrigo trabalhava em casa, num quartinho dos fundos da casa dos pais. “Qual a diferença entre trabalhar em casa e ter um espaço reservado para isso?”, lhe pergunto. “A privacidade, uma maior concentração, não ser interrompido, entrar no seu próprio fluxo”.
Ele conta que vem ao ateliê de duas a três vezes por semana, depois do almoço, e fica até o início da noite. Por vezes cria em casa também, peças menores. “Mas nem sempre estou aqui para produzir alguma coisa. Às vezes venho para ler, cortar papel, cortar tecido, deixar a cabeça livre, limpar”, ressalta. Fico pensando nessa ideia, enquanto nos dirigimos para o fim da entrevista e já ensaio uma despedida: sair de casa, dirigir-se a um lugar específico apenas para cortar papel. Imagino Rodrigo Mogiz sozinho durante uma tarde inteira em silêncio, cortando papel, cortando tecido, a esmo, sem saber ao certo aonde ir. Quantos processos artísticos começam assim, com um gesto sem objetivo? Ele parece ler o que penso, pois complementa: “às vezes o erro e o acaso podem virar um trabalho. A mão guia a mente”.
Fechamos a porta.
Passamos novamente pelo espaço expositivo.
Descemos as escadas, ele me leva até a calçada, nos despedimos.
Estou na rua outra vez.
Do lado de fora.
Rodrigo Mogiz é um artista visual, graduado pela Escola de Belas Artes da UFMG. Atua como artista desde o ano 2000 e, desde 2003, dedica-se ao bordado como linguagem em seus trabalhos, tratando-o enquanto desenho e pintura, buscando discussões em torno de relações afetivas a partir da sua homoafetividade e da tradição do bordado e estabelecendo conexões entre o artesanato e o design. Realizou cerca de 10 exposições individuais e participou de 52 coletivas em Belo Horizonte, onde vive e trabalha, e em várias outras localidades do país e do exterior. Suas mais recentes exposições foram a coletiva Cuir pela galeria chilena Isabel Croxatto e a individual Aqueles (In)visíveis pela Casa Fiat de Cultura em BH, ambas em 2021. Mogiz ainda trabalha como professor em oficinas e projetos sociais trazendo essa questão da tradição da arte, do artesanal e do design para uma discussão em torno da sustentabilidade.
Douglas Ferreira, 1993, possui formação em Letras pela UFMG e atua como professor de literatura e editor da Revista Cupim. Publicou Artur verde (Alecrim, 2020).
Fotografia: Marco Marinho
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