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Mudança

Sara Begname


para a Dani


Alugo um apartamento 

de brancas paredes 

tão alva riqueza 

assentada na madeira 

que lhe dá polido apoio. 

Sem os adereços 

de um fatigado cotidiano 

cultivo neste espaço 

a paz da falta de coisas. 

Avisto desconhecida paisagem 

pela transparência das janelas 

e animo-me à viagem 

que tomo como meta 

na ausência das cortinas. 

Da pilha de caixas 

–  escada improvisada – 

encaixo as primeiras lâmpadas 

tão fraca luz para 

o tamanho destes cômodos 

que não sei ocupar. 


Chega aos poucos a vida 

em caixas carregadas pelos corredores

homens partem e regressam 

num bufante galope de 

quadros livros panelas. 

Eis a odisseia das caixas 

que rolo como Sísifo 

no penoso trabalho 

de levar o próprio fado. 

Ergo algo amorfo 

com meus velhos móveis, 

aqui amiudados, perdidos,

parcos se aglomeram 

num todo desconexo –

espólio levado às pressas

da Ítaca perdida. 


Vai minha nova casa: 

(Penélope esquecida) 

entre os primeiros convidados 

que como eu não reparam 

o desnível da pintura 

o velho furo não tampado 

o fio solto da tomada. 

Um cupim encontra 

e rói o rodapé -

contínuo obreiro do degrado.

Passo os primeiros meses 

assistindo a uma gota

em queda sobre o rack. 


Exausta, a casa murcha 

desfaz-se todo o engenho 

qual penúria destruída 

não prevista em vistoria. 

A gota agora jorra sobre o sofá 

e aos bocados o cupim 

abocanha a cadeira

pelos pés. 


Devagar a água empoça 

leve depressão no terreno 

de tão brilhosos tacos

e já me atinge os joelhos. 

Pendem do teto 

ácidas águas e das paredes 

ausculto as estalactites 

de um gesso destroçado. 

Acumulado, o líquido 

entra agora em ondas

que pelo corredor

chegam aos quartos de dormir. 


Mas voltam, em rebote, 

deixando em espumas 

a beira da sala. 

O inchaço esmaga 

o já desmanchado edifício. 

Olho imóvel 

os canos estourados de 

uma malfadada obra 

e puxo com o rodo 

–  duro esforço despendido – 

algas de debaixo dos armários.

Mas os corais estão já 

à altura das estantes 

quando avisto um corpo

denso e imponente 

nobreza de cetácea arquitetura 

                                    arrastada: 


que fazer com esta baleia 

atracada em minha sala?




 

Sara Begname é leitora de poesia, doutoranda em Literatura Brasileira pela UFMG e professora. 


Ilustração: Douglas Ferreira,

com verso de Gonzalo Bolliger.


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