Tatiana Bicalho
Monólogo 1
Ela: 50 / 60 anos / Saudosista / Melancólica
Este texto é para ser encenado por uma personagem com perfil maduro.
Atenção: a fala é cheia de pausas e quebras, que precisam ser usadas no tom certo.
Ato 1
foi um pedido inusitado, sim! não que eu estivesse surpresa, mas depois de vinte anos de casa, alguém ainda lembrava da pochete rosa neon da ocean pacific e do aplique de cabelo sintético comprado na galeria do ouvidor.
à memória
corredores reformados, quartos com cheiro de tinta fresca misturado com
colônia charisma da avon, guimbas e restos
outros cigarros,
porra, pó, saliva,
e amor?
só conheci o amor que começava quando um boa noite se encerrava
lá pelas 9 da noite, Reynaldo era o seu nome
éramos jovens, poucas falas e muitos cacoetes
estreantes na carreira
ele uma promessa global
eu, uma coleção de dálias e recortes de caras
e vislumbres de um futuro nada promissor
enquanto isso, dentro e fora:
flatos audíveis misturados a buzinas, xingamentos e carteados
truco!
cerveja, mijo e beijos
mesclado com água sanitária, veja multiuso
e minhas mãos encardidas dos sucessivos anos como faxineira do concord 248
e a luz intermitente do neon avisa o preço da bimbada:
R$30,00 a hora
de segunda a sábado, o mesmo cenário, as mesmas luzes, a cacofonia cafajeste
persistente
se ajusta à audição abafada pelo tempo
uma voz estridente interrompe: - já acabou, viado?
vinte anos de casa e vinte anos sendo chamado de viado.
deve ser porque tenho um nome ordinário
tão ordinário, que meus pais não se deram ao trabalho de sequer escolher outros nomes para os filhos. colocaram:
maria
maria
maria
maria, todas santas
e joão, um apóstolo salvador e evangelista.
- CABEI SIM!
MAS MEU NOME É MARIA, VIADO!
ah, esse corpo! esse que não mais responde na mesma agilidade,
passos lentos,
mãos sincopadas que aos poucos perdem a aderência
táctil
somente os dedos brincam em pequenos staccatos quando passo vagarosamente
as mãos pelas paredes do corredor descascado pelo
atrito de corpos e não pela passagem do tempo
os gemidos que restam fundem-se com roncos
e anuncia o término do turno
dentro o escuro que clareia
se mistura a sirenes e o chiado que o neon faz
quando se apaga
shhhhh
é hora de ir
sonhar outras camas, outros sons e corredores
o trajeto é longo
o tempo, na passagem das convenções não
cabe o tanto do alvoroço do dia
ATO 2: a quebra do monólogo
Uma rua abaixo
saio andando pela curitiba até o cruzamento com a guaicurus, passo em frente ao imperador, lugar onde prestei serviço por um tempo e não recebi como combinado. desisti da justiça trabalhista, porque o encarregado alegou falência nos negócios. consternada ainda emprestei o pouco dinheiro que tinha para pagar o conserto da catraca da porta. já na rua dos caetés, à espera do ônibus, vejo uma placa nova de um empreendimento, o salão luz & brilho, o que me faz lembrar que justo ali, aprendi a usar o isqueiro para queimar as pontas soltas do meu cabelo sintético. são 5:48 da manhã, segundo a placa de horário, meu ônibus passará 6:13. ainda me resta tempo para olhar o entorno que aos poucos se ajusta em mim. a cena é esta: você surgindo, segurando a minha mão com toda a delicadeza que lhe foi concebida, eu, resplandecente em um vestido brocado, uma cópia fiel da madonna, na cintura a pochete rosa neon da op, ao fundo um ruído do que seria my way, em MIDI.
dançamos mesmo assim.
a placa avisa: 6:13
o ônibus chega
o percurso é um sucessivo de cenas borradas
de um plano americano mal executado
à memória
de segunda a sábado, o mesmo cenário,
as mesmas luzes,
a cacofonia cafajeste segue
persistente
Ela olha para um lado e para outro, está sozinha.
Seu olhar flerta com a sua audiência,
a cena se fecha.
Ato 3:
Ato sem palavras
Um ato só é revolucionário quando é encenado a dois.
Tatiana Bicalho é fotógrafa, escritora e curiosa profissional em processos artísticos e não artísticos. Tem dois livros de poesia publicados: Notícias Populares, pelo Selo Leme, da Editora Impressões de Minas, e Invenção a duas vozes, pela Editora Urutau. Coordenou e lecionou para o curso de Português e suas literaturas na Universidade de Aswan, no Egito, por um período de 10 meses. Na mesma universidade, ajudou a criar a revista literária Flouka, com apoio da Embaixada do Brasil no Cairo.
Fotografia: Tatiana Bicalho
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