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Carta à minha filha

  • Cupim
  • 24 de mar.
  • 6 min de leitura

Ana Clara Damásio






Minha filha,  


Eu comecei a escrever esta carta algumas vezes. Foram alguns rascunhos, mas tudo  parecia muito truncado. Nem sei se as coisas se desenrolaram no momento. Só que estou à  beira dos trinta anos, e sentia que esta carta tinha que sair de alguma forma. E eu sabia o que  te dizer. Queria pensar no que a antropologia me deu, pois tive uma transformação dentro de  mim causada por ela. Transformação essa que exigiu mudança, mas também firmeza e  coragem. E de tantas coisas nesse mundo, eu sei que sua mãe foi corajosa. 


Mas não foi uma coragem de peito aberto, do tipo que enfrentaria tudo na cara e na  coragem. Foi uma coragem de fazer algumas coisas, inclusive entrar em uma Universidade.  Isso exigiu uma coragem que me fez questionar tudo o que eu sou, tudo o que nossa família é,  tudo o que é você. Como a primeira da nossa família a entrar em uma Universidade, sempre te  falei das casas que sua avó teve que limpar e dos prédios pela cidade que seu avô ergueu. Eu  apontava cada um para você quando passávamos em frente. E eles foram corajosos também,  minha filha. E eu te contei essas histórias e apontei esses lugares para que você não esquecesse.  Esquecer é um projeto colonial de fraturar os nossos caminhos (não deixe que eles quebrem o  teu lembrar). 


É preciso lembrar sempre que sua bisa Maria era empregada doméstica. Que sua bisa  Anita era vendedora de feira. É preciso lembrar que sua tataravó Nora era carvoeira e por isso  ficou cega. E que seu bisavô Luiz era broqueiro e por isso morreu cedo. É preciso lembrar do  caminho que te colocou aí, pois muitas vezes você irá se perguntar se esse caminho está certo.  Só que não existe caminho certo, minha filha. Tudo o que você possui é a possibilidade de não  esquecer. Pois quando esquecemos o caminho, nos rendemos a narrativas que nos fazem  acreditar que consumindo o celular mais recente teremos de volta algo que falta. É preciso  lembrar que a falta também foi parte constituinte da nossa história.


E é engraçado como percebi que grande parte do que te contei agora foi inerente ao  processo de virar antropóloga. Pois depois de inúmeras mudanças (depois desse processo de  virar), voltamos para revisitar (ou revirar) nossas histórias. E eu quero revisitar uma com você  agora. 


Eu lembrei de quando sua avó Ana, que trabalhava para uma fazendeira muito rica, me  levava para passar as férias no trabalho dela. Sua avó não tinha com quem me deixar e, por  isso, me mantinha por perto. Ela me cuidava muito. Me cuidou sempre. Chegando na “casa da  cidade” dessa fazendeira, eu me perdi dentro da residência. Eram tantos quartos, tantas salas,  tanto quintal. E eu via tudo muito lustroso, muito brilhante e claro. Era sua avó quem mantinha  tudo daquele jeito. Ao me deparar com tudo aquilo, creio que foi a primeira vez que me deparei  com o que chamamos de “alteridade”, senti um ódio do tamanho do meu corpo. Para uma  criança, era muito. Eu não entendia como aquela pequena família poderia ter tudo aquilo,  enquanto eu e sua avó voltaríamos para nosso barraco no chão batido com o banheiro cheio de  baratas que eu odiava. Nunca te contei, mas é por isso o medo de barata. E as pobres, como eu,  só queriam viver. 


Eu nunca te contei muita coisa, há histórias que não passamos adiante. E hoje entendo  melhor as mulheres da nossa família. Não por acaso, a antropologia me permitiu revisitar a  história da nossa família. E, nos últimos anos, procurei compreender como, em meio a tantas  precariedades, nos movemos pelo que chamamos de Brasil. Fomos do Piauí para São Paulo,  para Brasília, para Goiás, voltamos para o Piauí... Caminhamos sempre em busca de melhores  condições de vida. Juntamos nossos pedaços. 


E eu te contei essas histórias e apontei esses lugares para que você não esquecesse.  Esquecer é um projeto colonial de fraturar os nossos caminhos (não deixe que eles quebrem o  teu lembrar). 

E eu tive, a algum custo, que provar que pesquisar nossa história era algo digno, pois  não era apenas a história da nossa família. Era a história de muitas outras famílias como a  nossa. Famílias imersas em um processo histórico longo, imersas em processos mais amplos  como o colonialismo, racismo e o capitalismo, que continuam criando condições para que  estejamos o mais próximo possível da precariedade. Para que estejamos o mais próximo  possível da morte, do sofrimento, do esquecimento. 

Acontece, minha filha, que percebo que a mudança vem em grandes frentes. E essas  mudanças emergem com as histórias que recuperamos. É a possibilidade de contar a nossa  história, da nossa perspectiva e do nosso jeito. Nada é fácil. Se bem que pra gente, nada nunca  foi. E a antropologia, como muitos outros campos, vive um momento de repensar a sua  existência por aqui. E todo processo de repensar nunca vem sem disputas, conflitos, rupturas e  dores. Há também aqueles que se ressentem das mudanças propostas, mas a mudança é parte constituinte de estar vivo. Sua avó sempre me dizia: “Nós mudamos tanto, mas eu entendi que  quando tudo mudou, eu estava mais forte”. E sua avó, minha filha, foi uma mulher forte. Ela  sabe sobre mudança mais do que todas nós. 


Mas há também, no meio de tudo o que a antropologia me deu, outros cenários  possíveis. No fundo, é o que tento também fazer com as histórias que são contadas por nossas  parentes. São aquelas histórias que, dentro dos nossos campos, tentam pensar a mudança que  estamos vivendo, como processo de reconstrução, como oportunidade, como vida. Não por  acaso, minha filha, você sempre ouviu sua mãe contar tantas histórias de família. Não por acaso,  você me ouviu falar que as histórias são importantes, pois essas mesmas histórias trazem  mudanças para nossa história, mas também para a antropologia. E, com isso, eu percebi que eu sou uma antropóloga que gosta de contar histórias. Com o tempo, entendi que só assim eu  poderia viver dentro da antropologia. 


Então, ao pensar no que a antropologia me deu, ela me fez ter medo de lembrar das  minhas histórias, mas também me fez encará-las. Ela me fez sentir ódio do mundo,  como quando olhei para a residência da patroa da minha avó, mas ela também me reconciliou  com aquela criança cheia de ódio. Ela me deu esperança, coisa tão rara por aqui. Pois o que  seria a esperança senão a vontade daquelas que nos mantiveram vivas? A antropologia tornou  possível que eu lutasse por você, por mim mesma e pela memória das nossas parentes. E por  isso, decido terminar essa carta te contando uma história mais recente, daquelas histórias que  chegam quando paramos para ver que estamos perto da beira da vida. 


Tive um encontro de escrita com uma mulher do Piauí, de uma cidade próxima à casa  da bisa Anita. Ela falou por aproximadamente uma hora. Ela me contou a história que a tinha  levado ali. Uma história repleta de empreitadas, de muita dificuldade, coisa que sabemos estar  tão enraizada conosco. E percebi que eu precisava escutar. Mas escutar não como quem escuta  uma propaganda, escutar como quem escuta uma música pela primeira vez. Ao fim, ela  perguntou o que eu achava. O que eu achava sobre seu texto, sobre seus planos, sobre suas  mudanças, sobre suas tentativas, sobre sua vontade, sobre sua fé, sobre sua dor. E eu disse:  “Você é corajosa”. 


E ela era corajosa, minha filha. E eu sei que há dias em que as coisas não vão sair como  planejado, pois nada foi planejado para nós nessa beira de mundo. Ou foi planejado para que  fosse exatamente assim. Mas eu peço que não se apegue nisso. Quero que se apegue na coragem  que habita você. Quero que lembre das histórias que contei. Quero que lembre que ao se lembrar de nós (sua tataravó, sua bisa, sua avó e, se puder, de mim), você lembre que você não  caminha sozinha. E que sua morada é a mudança. 






Referências Bibliográficas 


ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro  Mundo". Trad. Édina de Marco. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, pp. 229-236, 2000. 


BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão da política antidemocrática no  ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019. 


DAMÁSIO, Ana Clara. A intimidade do parentesco: E os pedaços da minha mãe. Iluminuras,  Porto Alegre, v. 24, n. 64, 2023.  


KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 


PEREIRA, Luena. Alteridade e Raça Entre África e Brasil. Revista De Antropologia, vol. 63,  nº 2, 2020, p. 1-14. 




 

Ana Clara Sousa Damásio dos Santos é Mestra em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente, está cursando o doutorado na Universidade de Brasília (UnB), no Departamento de Antropologia (DAN). Ela é membro do MOBILE - Laboratório de Etnografia das Circulações e Dinâmicas Migratórias (DAN/UnB) e do Laboratório de Ensino de Sociologia Lélia Gonzalez (SOL-UnB). Ana Clara também atua como Editora Associada da Revista Novos Debates: Fórum de Antropologia. Seus interesses acadêmicos incluem temas como relações raciais, gênero, geração, parentesco, ensino de sociologia, migração e metodologia antropológica. Além disso, é a idealizadora do podcast "Antro, como faz?", um projeto que busca tornar a metodologia antropológica mais acessível e de fácil compreensão.


Ilustração: bilhete de Vania Ferreira enviado ao seu filho, Douglas Ferreira, editor da Revista Cupim.

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