Por Djalma Ramalho
Era tarde de domingo de natal. Araçuaí é uma cidade pequena, muito quente e com muito morro. O calor mexe com as pessoas. Eu montei na minha antiga bicicleta – que agora é do meu sobrinho – preparado para voltar com as mãos sujas de graxa, e danei a dar voltas nas redondezas da casa de mãe, onde hoje moram minhas irmãs. Pedalei olhando para o familiar céu azul-sereno que, embora desocupado de nuvens, não me deixava ver porta nem janela.
Não tenho muitas lembranças dessa parte da cidade. Fui criado na parte baixa por mãe e as meninas – e elas só se mudaram há alguns anos, quando eu já tinha saído de casa e estava correndo trecho. Numa rua, duas acima, vi numa calçada uma mesa com pessoas que riam alto a comer e beber os restos da ceia da noite anterior, e doutro lado da rua, na outra calçada, uma mulher volumosa se banhava de mangueira. Eu pedalei mais devagar para prestar atenção, e, porque a ladeira pediu. A mulher era toda grande: de corpo, de humor e de sede. Se deliciava a cada gozo da mangueira e gargalhava alto.
Mas o que tinha naquela água? Araçuaí é uma cidade muito quente. A mulher obtusa se lambuzava em líquidos e risos. O povo na calçada em frente se deliciava com a carcaça do peru, lombo e passas em tudo. Eu vagaroso no pedal cheguei ao topo da ladeira. Araçuaí é uma cidade com muito morro. Parei no meio da rua, entre a mesa e a mangueira, apoiei o pé esquerdo no chão e fiquei olhando para mulher volumosa. O calor mexe com as pessoas. Ela me reestilingou o olhar percebendo em mim algo estranho, mas não estrangeiro.
A mesa que algazarreava atrás de mim se silenciou. Só se ouvia a água por uma pequenina eternidade. Da boca da mangueira pro corpo da mulher, do corpo da mulher pra calçada, da calçada escoava pela rua. Sua voz, duas oitavas mais agudas do que eu esperava, cortou o silêncio suspenso no ar, me perguntando desaforada: "quer o quê?". De pronto eu retruquei "me molha!". Ela ficou imóvel, suas retinas escancaradas me miravam. A mulher olhava parecendo tentar reconhecer em mim alguém que talvez nem eu conheça. Ela o tiro, eu o alvo.
E disparou o jato-gozo de água em minha direção. Eu virei a cara para baixo para proteger o rosto, já que as mãos estavam no guidão da bicicleta, e o toque da água fez meu corpo sorrir. O líquido me abraçou inteiro e fresco, e me dei conta de que pela primeira vez durante toda a viagem eu estava vivendo no presente, segundos que seja. Acho que isso é o que chamam de felicidade.
A mulher gargalhava como se banhasse a si mesma. Araçuaí é uma cidade pequena. "Cê é filho de quem?" ela disse tirando o jato de água do meu rumo. Eu, tirei o pé que estava no chão e voltei a pedalar respondi "de Iza". Curiosa, a mulher volumosa me perguntou, "e sua mãe mora onde?". Pedalando com força, até avoar, gritei satisfeliz: "No céu. Minha mãe mora no céu!”.
Djalma Ramalho é um multiartista que atua entre o teatro, a música e a literatura. O foco de seu trabalho são os hibridismos e oposições entre arte contemporânea e as manifestações de tradição popular do Vale do Jequitinhonha. Entre suas criações estão "Abena" (trilha sonora e dramaturgia), que recebeu o Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras em 2017; "Absurdos" (direção e dramaturgia) que recebeu prêmio de Melhor Direção no I FNTB de Brasília (2018); e “Híbrido” (2019), performance solo que mescla música, teatro, literatura e arte-ritual. Formado no Teatro Universitário - UFMG em 2017, atualmente gradua-se como Bacharel em Letras pela UFMG, onde executa uma pesquisa de iniciação científica voltada para a literatura afro-brasileira.
Ilustração: Fernanda Maia
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